PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE «ERA UMA VEZ UM ALFERES E OUTRAS HISTÓRIAS»

Sep 11, 2018

O grande Eça de Queirós, já não sei em que texto de subtil e delicada ironia, escreve que a curiosidade tanto nos leva a escutar atrás das portas como a descobrir a América.

A diversidade dos contos prefaciados é resultado da minha curiosidade e, francamente, prefiro que ela seja mais de conduzir à aventura que à privacidade alheia.

Estes textos estendem-se sobre veios profundos, como um desdobrar variado de paisagens acima de insuspeitados caudais freáticos. Num tom alegre, trágico, popular ou solene, o autor quis revelar (ou esconder) as suas perplexidades perante um mundo que, ao invés da literatura, não foi fabricado para nos dar um sentido.

O autor bíblico de O Eclesiastes (ou autora?) num daqueles belíssimos textos que conseguem toar as almas de melancolia, e submeter as mais inábeis traduções, discorre, em dada altura, sobre os diversos tempos da nossa condição: tempo para amar, tempo para morrer, tempo para juntar as pedras, tempo para atirar as pedras, tempo para rir e tempo para chorar. Este volume, reunindo esta polifonia de textos, responde a essa diversidade de instantes e de ângulos de observação que ora se sucedem, ora se acumulam, ora se interpenetram, ora se demarcam, mas que respeitam sempre à mesma sensibilidade, ao mesmo júbilo, à mesma mágoa. Talvez cada escritor escreva permanentemente o mesmo livro, e estes sejam trechos do livro único, tratado de vários modos. E, quem sabe, talvez o livro de cada autor seja apenas uma secção do grande livro total.

É difícil dissociar o sorriso dos Casos do Beco das Sardinheiras do declive brando das velhas colinas de Lisboa, a uma luz doce, com um casario ancestral a escorrer sobre um rio vasto, cansado de História. As personagens moram numa cidade que veio do fumo dos tempos, que já abrigou fenícios, cartagineses, romanos, visigodos, mouros, e nunca deixou de ser de «muitas e desvairadas gentes», como Fernão Lopes menciona. Talvez esse permanente intercâmbio com os outros, marcado, não raro, pela violência e pela intolerância, haja deixado um fundo reluzente de sabedoria, como as palhetas de ouro que mesmo nos nossos dias, ao que dizem, se podem apurar penosamente nas areias do Tejo.

Ainda hoje, pelo emaranhado de vielas e becos, corre, numa pincelada festiva, o amarelo dos carros eléctricos (a que aqui no Brasil chamam bondes) sacudindo o tinir vivo e álacre de campainhas, zunindo vertiginosamente nas ladeiras estreitas, roçando milimetricamente as esquinas. Não há muito tempo, seria plausível que na soleira duma porta, num fim de tarde, um velho operário, com um copito de aguardente «amarelinha» entre os dedos, resolvesse contar «casos» supostamente vividos, e começasse cada um deles com um equivalente lisboeta de «era uma vez», ou seja: «uma ocasião».

Desta terra houve muitas partidas e não poucos (embora menos) retornos. Varejaram-se mares, sofreram-se medos e trouxeram-se assombros de monstros e catástrofes. Não admira que algumas dessas narrativas (e o autor confessa que lhes carregou bem na nota), só não sejam desmentidas por quem sentir mesmo uma grande vontade de acreditar, como será, decerto, o caso do meu benévolo leitor.

Quando os últimos epígonos do nouveau roman, mestres pacientes do enfado, ainda se autocontemplavam em pálidas escritas de amanuense, quando os últimos reflexos do brilho das vanguardas já se embaciavam com o desgaste da repetição, quando os últimos resistentes do neo-realismo ainda reclamavam formas cansadas de desmistificação social e prosas operárias, os Casos do Beco das Sardinheiras surgiram como uma provocação, recuperando as categorias da narrativa, usando profusamente o riso, revisitando a velha linguagem popular e abrindo para um turbulento mundo mágico. Traziam uma grande vontade de contar e de ser lidos.

Nas atribulações da nação portuguesa, calharam-me em vida uns anos em que se estava em guerra. A juventude – praticamente sem excepções – tinha que encarar muito seriamente o dilema de se exilar ou partir em armas para uma das frentes do Império. Os jovens universitários, sem serem militares de carreira, eram sujeitos a um treino intenso de seis meses e enviados como oficiais subalternos – com a patente de alferes – para outros continentes. Nunca estive na guerra, nem sequer conheço África porque as circunstâncias me levaram a seguir o rumo do exílio, que logo conto amanhã. Mas, nesses tempos, e antes de passar pela prisão, fui militar à força, puseram-me uma arma nas mãos e deram-me ordens.

Uma vez (eu iria dizer «uma ocasião»…) naquelas aulas de instrução militar ao ar livre que muito puxavam o sono de um dia muito vigoroso, foi disposto no solo um pano de tenda coberto de caixas de madeira e plástico, de desencontrados feitios, cores e tamanhos, com um aspecto de misteriosa quinquilharia de feira. Um moço tenente, duma simpatia expansiva e camaradona, manifestamente entusiasmado com os objectos, esforçava-se por nos fazer compreender umas siglas em que figuravam letras, números e vocábulos arrevesados: eram minas, um mostruário de minas para todos os gostos e feitios. Retive apenas uma rápida explicação sobre um engenho perverso que, felizmente, não seria muito habitual: a chamada (foi, pelo menos assim que o meu tenente a designou) «mina de descompressão» que explode não quando se pousa o pé, mas quando se retira. Dessa memória nasceu, uns anos depois, o conto Era uma vez um Alferes.

Mas a tropa, em tons de cinzento e verde, era também um mundo de linguagens e de sinais que se pretendiam bem demarcados do pântano morno da vida civil. Ali, as pessoas tratavam-se energicamente por «meus» e «nossos», («meu capitão, nosso cadete») e utilizavam um glossário especioso e obrigatório. Um carro era sempre “uma viatura”, um motorista, um «condutor», um cavalo «um solípede», um barrete, um «quico», um soldado, um «pronto» e um objecto pequeno indeterminado, um «pinchavelho». Havia fórmulas de cortesia arcaicas, do tipo «vossa senhoria, meu capitão, dá licença?», continências, e velhos preceitos de cavalheirismo, em meio duma berraria infernal. E nós, os cadetes, desprevenidos universitários, vindos dum mundo agitado, de reuniões, discussões, manifestações, mas com hábitos de urbanidade no trato recíproco, vimo-nos de repente no meio da formatura, com os nossos óculos, os nosso jeito sedentário, os nossos tiques intelectuais e elitistas, o nosso sovaco acostumado a livros, as nossas boas maneiras, o nosso disfarçado individualismo, a quem ninguém ali dava a menor importância.

E tudo isto, do nascer do sol à noite, e, não raro, pela noite fora, estava impregnado de guerra: da experiência da guerra, das memórias de guerra, das histórias de guerra, das ciências da guerra, dos gestos da guerra, das cautelas da guerra, dos reflexos da guerra, dos sobressaltos da guerra, dos instrumentos da guerra, dos acidentes da guerra. A minha prisão pela polícia política interrompeu-me a instrução militar e, ironicamente, acabou por me afastar da mobilização. Se as voltas da vida me tivessem levado às picadas de África ou às montanhas de Timor provavelmente não teria o desembaraço de escrever uma linha sobre a tropa, como não tem acontecido a propósito doutras circunstâncias da minha biografia.

Mas a vida militar foi para mim tão bizarra que não resisti a aventurar-me naquela linguagem, enformando um mundo ficcional a partir do que pude imaginar das partes de África e Oceânia, encaradas com espanto por jovens oficiais sem vontade nem vocação para estar ali.